quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Chaves from hell?

Ainda ano passado, dois amigos e eu comentávamos uma análise sobre Chaves que achamos interessante. O seriado mexicano do genial humorista recém falecido Roberto Bolaños, segundo o escritor brasileiro Ademir Luiz, no texto Pecados, demônios e tentações em Chaves, trata-se de uma verdadeira representação do inferno. Para quem ainda não o leu, vale a pena conferir. A fértil imaginação do autor juntamente com o seu bom conhecimento da série e literário fazem do texto uma leitura curiosa. Um desses amigos, Lucas Rodrigues Oliveira, indignado com tamanha "viagem" acerca de uma de suas preferidas obras de comédia da TV, fez uma excelente réplica a todos os argumentos usados pelo autor dessa ideia. Segue abaixo o texto de sua autoria:

Há pouco mais de um ano, ouvi falar de um texto que afirmava que Chaves, o seriado mexicano, seria uma representação do inferno. Os argumentos que escutei me pareceram absurdos, e pedi que o texto me fosse enviado. Depois de ler, minha conclusão continuou a mesma. O texto (Pecados, Demônios e Tentações em Chaves) é muitíssimo bem escrito, e o autor demonstra um grande conhecimento literário, além de um conhecimento muito bom da própria obra de Chespirito.
Porém, como fã, fiquei revoltado com as insinuações feitas por ele em vários momentos. Também fiquei surpreso pelo fato de o autor, apesar de escrever muito bem, usar uma lógica muito fraca e facilmente derrubável em muitos momentos, o que me motivou, assim que fiquei sabendo do texto, a fazer a proposta de escrever um texto como contra-argumento. Enrolei muito para isso, e agora, uma semana depois da morte de Chespirito, um de meus maiores ídolos, escrevo finalmente este texto.
O autor, pela impressão que eu tive, me parece um fã de Chaves. Além de todo o seu conhecimento da obra, chega a declarar, em um momento, que Roberto Gómez Bolaños é “apelidado, num exagero quase perdoável, de ‘Pequeno Shakespeare’”, em uma referência ao apelido “Chespirito”. Eu, pessoalmente, não acho exagero, pois considero Chespirito o maior gênio do humor que eu já tive a oportunidade de assistir, um dos maiores humoristas que o mundo já conheceu. Mas o que mais me incomoda no texto são as afirmações categóricas do autor; logo depois de falar sobre o “exagero quase perdoável”, ele diz que Chaves é “uma das mais sutis, brilhantes e temíveis representações do inferno em qualquer das artes”. Ao longo de todo o texto, o autor fala de suas teorias malucas como se fossem verdades claras. Ele escreve como se ele soubesse mais da obra do que o próprio autor, como se ele soubesse o que o autor pensa a cada momento. Quem ele pensa que é pra dizer que o autor pensou desta ou daquela forma, e que ele arquitetou toda essa sátira?

Introdução – Teorias da conspiração na ficção

Teorias da conspiração existem em todos os lugares. É muito fácil surgir uma teoria da conspiração, em relação a temas mais variados: política, religião, esporte, ficção, etc. Especificamente na ficção, o campo é extremamente fértil. Mas a maioria das teorias da conspiração que eu conheço são grandes viagens baseadas em um ou outro ponto concreto; a partir daí, a imaginação do autor da teoria em questão começa a agir de forma mais livre.
Antes de falar de Chespirito, algumas teorias da conspiração famosas me surgem a mente. Todas são grandes e complexas, e dariam um texto inteiro sobre elas, então vou apenas resumi-las. A primeira é sobre Pokémon: em resumo, Ash estaria em coma desde o ataque dos spearows, no caminho para Veridiana, e a partir daí todos os acontecimentos do anime se passam na imaginação do personagem. Isso explicaria, entre outras coisas, o fato de Ash encontrar tantos pokemons lendários, a Equipe Rocket se tornar menos ameaçadora depois de Veridiana, as enfermeiras e policiais de todas as cidades serem exatamente iguais e a falta de envelhecimento nos personagens. A teoria termina com Ash acordando do coma e morrendo.
A segunda teoria é de KND: A Turma do Bairro, que afirma que todo o desenho se passa na imaginação de uma criança doente, que foi deixada em um hospital/orfanato (Número 2). No final da teoria, ele também morre. A terceira é de Du, Dudu e Edu, que afirma que todas as crianças do desenho estão mortas, numa espécie de purgatório. Familiar? Pois a teoria ainda afirma que as irmãs Kankers seriam demônios dispostos a atrapalhar os personagens da vila, que, vejam só, é isolada, com pouquíssimo contato com o mundo externo. Ainda segundo a teoria, cada criança do desenho (que não tem a presença de adultos) teria morrido em uma época diferente.
O ponto que eu quero chegar é que a maioria dessas teorias da conspiração é muito parecida. Elas pegam alguns pequenos pontos que fazem sentido e criam toda uma história oculta por trás disso, normalmente usando alguns argumentos forçados em pontos que os autores não conseguem encaixar. Mas, se você for além desses pontos iniciais de cada uma dessas, vai encontrar diversas falhas. E, na maioria dessas teorias, existe uma fixação enorme por morte, inferno, coisas satânicas, etc. Esses temas são tão freqüentes que muitas teorias se repetem, mesmo sendo relacionadas a obras diferentes. 
Uma das teorias relacionadas a Bob Esponja é um exemplo clássico. Todos os personagens principais seriam personificações de um pecado capital (opa, familiar de novo?): Patrick (Preguiça); Lula Molusco (Ira); Seu Sirigueijo (Avareza); Plankton (Inveja); Gary (Gula); Sandy (Soberba); Luxúria (Bob Esponja). Aqui fica claro como a teoria tem alguns pontos forçados. Primeiro, me parece um exagero considerar Gary um dos personagens principais, ele entrou só para a lista encaixar. E o pior de tudo é considerar a luxúria para Bob Esponja. Segundo a teoria, “Luxúria, em uma definição mais correta, significa ‘amor excessivo dos outros’”. Não concordo com esse ponto (e o Priberam define luxúria como “Desejo de prazeres sensuais ou sexuais”), mas vamos admitir, por um momento, que essa definição também seja aceita. Se admitirmos isso, continuaria sendo um absurdo falar que o pecado capital da luxúria consiste em amor excessivo. Afinal, se os pecados capitais, que são usados no cristianismo (principalmente no catolicismo) condenassem o “amor excessivo”, não estariam condenando o próprio Deus deles (principalmente na figura Jesus, o filho) de um pecado capital? Logo, para mim fica claro que a luxúria do pecado está mais próxima da definição do Priberam.
Não estou querendo dizer aqui que todas as teorias da conspiração são infundadas (só a maioria!). Algumas criam uma elaborada rede de argumentos que encaixam muito bem. O melhor exemplo disso que eu tenho no momento é a Teoria da Pixar, que afirma que todos os filmes da Pixar fazem parte de um mesmo universo, e estão apenas separados no espaço e no tempo. Não vou explicar toda a teoria (novamente, daria um texto inteiro só para ela), mas ela tem vários pontos que encaixam de forma incrível, enquanto outros ainda são meio forçados (ex: os monstros de Monstros S.A. seriam o resultado da reprodução de seres humanos com outros animais, em uma tentativa de repovoar a Terra depois de Wall-E). Mas, no geral, a teoria é muito bem feita. O que não é o caso da teoria de Chaves, que é cheia de argumentos ilógicos, como veremos a seguir.

Contra-argumentos
Nessa parte, vou me dedicar a derrubar, um a um, todos os argumentos do autor da teoria de Chaves.

1. Título – El Chavo del Ocho

Segundo o autor, o título é o primeiro e mais importante sinal que deve ser decodificado para que a série revele o seu verdadeiro sentido auto-moralizante. Primeiro, se o objetivo da série é moralizar, e isso é feito através da decodificação das parábolas e alegorias explicadas pela teoria, como apenas o autor da teoria, depois de tantos anos, percebeu isso, e ninguém mais? Será que um gênio como Chespirito teria errado tanto assim ao passar a mensagem? Será que ele seria um comunicador tão incompetente? 
Mas, voltando ao título, de fato a palavra “Chavo” pode ser considerada como um equivalente em espanhol para a palavra “moleque”, do português. Até aí, tudo certo. Mas o autor continua: moleque seria quem faz molecagens (até aí tudo bem...), quem subverte a ordem (um pouquinho forçado, mas tudo bem) do que seria moralmente ou socialmente aceito (um pouco mais forçado). Aí, o autor chega à “brilhante” conclusão de que o moleque é, em livre interpretação, um pecador. Só eu achei que essa interpretação foi livre demais?
Essa foi a primeira vez na minha vida que eu vi alguém associar a palavra “moleque” com a palavra “pecado”. Então vamos lá: o que é um moleque, na língua portuguesa? Basicamente um menino, com o porém de que a palavra, na maioria das vezes, tem um tom pejorativo. Seria um menino travesso, levado, que faz traquinagens (ou, algumas vezes, em um tom mais pejorativo, chegando a ser ofensivo). Em alguns casos, mais raros, pode ser até uma forma carinhosa de falar. Em outros, a palavra serve para demonstrar imaturidade. E, também, de forma mais generalista, pode ser usado para falar, em geral, sobre meninos de rua, que é o sentido que eu entendo que foi usado no título da série. Não parece uma relação mais provável do que a usada pelo autor da teoria?
Bem, a partir do título que “obviamente” fala de um pecador, o autor chega à conclusão de que a série trata de pecados e, mais especificamente, pecados capitas. Aí ele explica o número 8. Segundo ele, Chaves não mora num barril, mas no número 8 (como o próprio Chaves fala algumas vezes na série). Quando pequeno, ele foi abrigado por uma idosa no número 8. A partir daí começam os problemas: segundo o autor, a velha, que nunca foi mostrada, talvez nem exista, e se existir, é a morte materializada. É impressionante a lógica usada pelo autor. Ele não sabe se ela existe; pode existir, pode não existir, mas, se existir, com certeza ela é a morte materializada. Isso tudo baseado apenas no número da casa dela, que é um 8.
Segundo ele, o 8 deitado é igual ao infinito (vou falar mais tarde sobre as relações numéricas em geral), e que, por isso, a velha que pode ou não existir definitivamente é a morte (ou, se eu quiser adotar uma relação semelhante ao gato de Schrödinger, eu poderia dizer que a velha é e não é a morte ao mesmo tempo?); afinal, a morte, ao contrário da vida, é infinita, pois seria o tempo correspondente a todo o antes e a todo o depois da vida. Bem...a morte, segundo a definição que ele deu, seria uma coisa infinita, mas apenas uma. Eu poderia citar outras, como o tempo (que, pela própria definição dele, é infinito), os números, o universo... Por que por estar supostamente relacionada ao infinito ela necessariamente é a morte? Poderia ser outras coisas, como a Senhora de Todo o Tempo, ou dos números, ou do universo, etc.
Mas eu tenho a explicação mais simples de todas para o nome da série. El Chavo del Ocho. O Menino/Moleque do Oito. A série fala de um menino de rua, que seria o moleque. E a série inicialmente passava no canal 8 (Galavisión, de propriedade da Televisa) lá no México. Além do número da casa que ele moraria, o nome também é uma referência ao canal. Não parece uma explicação um pouquinho menos estapafúrdia?

2. A claustrofóbica vila

O autor começa partindo do princípio de que a vila é um pedaço do inferno, e os personagens estariam mortos, e já teriam sido condenados no julgamento final. Eles estariam condenados a viver eternamente naquele espaço minúsculo e claustrofóbico, que teria apenas a vila (que inclui várias casas e um espaço à direita, que tem uma fonte), uma rua estreita (à esquerda), que leva a um parque, a uma sala de aula e a um restaurante. Também tem um salão de cabelereiro que ele esqueceu, mas é totalmente perdoável. Vale lembrar que, em algumas ocasiões, os personagens vão para outros lugares nas proximidades da vila. Por exemplo: quando Quico e Chiquinha pedem dinheiro para comprar balões, eles saem da vila e voltam com balões. Quando Dona Florinda manda Chaves comprar um bolo, ele vai na confeitaria comprar um bolo. Mas, tudo bem. Admitamos, por um momento, que todos esses locais nas proximidades da vila fazem parte de um pequeno ambiente isolado, que seria um pedaço do inferno. Aí temos Acapulco! E temos aí o que é um dos piores argumentos utilizados pelo autor (só se compara com os números, que serão explicados mais tarde).
Segundo o autor, variações, como Acapulco (e acredito que posso aqui incluir também o cinema) seriam exceções que confirmam a regra! É incrível como alguém é capaz de falar tamanha bobagem. Não há uma exceção que confirme a regra. O que há são regras que existem apesar das exceções. De fato, toda regra tem exceção (afinal, se não tiver exceção, não é regra, é lei), mas a exceção nunca pode ser usada como uma confirmação da regra. Vamos aos exemplos:

Regra: Verbos da segunda conjugação, na língua portuguesa, terminam em “er”.
Exceção: O verbo “pôr” e suas variantes (propor, repor, supor) pertencem à segunda conjugação.
Conclusão: Como o verbo “pôr” é da segunda conjugação, isso só confirma que os verbos da segunda conjugação terminam em “er”.
Explicação correta: O verbo “pôr” vem de uma modificação do antigo (e não mais usado) verbo “poer”, que, terminando em “er”, faz parte da segunda conjugação.

Regra: No futebol, um jogador que, no momento do passe, está à frente da linha da bola, no campo de ataque, com menos de dois adversários entre ele e a linha de fundo (pra facilitar, vou resumir isso como “posição irregular”), é considerado em posição de impedimento.
Exceção: Depois de uma cobrança de lateral, um jogador que estaria em posição irregular pegou a bola, e não foi marcado o impedimento.
Conclusão: Como ele estava em posição irregular e não foi marcado impedimento, isso só confirma que jogadores em posição irregular estão impedidos.
Explicação correta: A regra do futebol não considera impedimento nos passes originários de lances de escanteio, lateral ou tiro de meta, mesmo o jogador estando em posição irregular.

Regra: A prova X deve ser feita às 13h do sábado.
Exceção: Pessoas da religião Y podem fazer a prova depois das 18h.
Conclusão: Como algumas pessoas fazem a prova às 18h, isso só confirma que a prova deve ser feita às 13h.
Explicação correta: O governo permite que, por respeito à livre escolha religiosa dos cidadãos, aqueles que, por motivos religiosos, não tenham permissão para fazer esforço no sábado (antes do pôr do sol) possam realizar a prova um pouco mais tarde, desde que fiquem em uma sala específica dentro do local de provas, isoladas e acompanhadas de um fiscal.

Mas não estamos aqui falando simplesmente de regras, mas sim de toda uma teoria. E um dos pontos centrais da teoria que estamos discutindo é que eles estão presos em um pequeno local isolado, e não podem sair de lá. A mera presença de Acapulco em um episódio, com seu grande hotel, ruas, piscina, praia, etc, por si só já é suficiente para derrubar toda a teoria, a menos que ele surja com uma explicação muito convincente para que os moradores da vila consigam sair do inferno (ou daquela região do inferno) momentaneamente para ir para um local tão amplo.
Vou dar um exemplo com outra teoria muito famosa: a Teoria da Evolução das Espécies, da biologia. Ela está de pé até hoje porque ela é toda muito bem encaixada e convincente, suas peças encaixam de uma forma impressionante, e até hoje não surgiu nenhuma evidência que a refutasse. Mas isso poderia acontecer um dia. Digamos que, por exemplo, arqueólogos achem fósseis de coelhos que datam do período pré-cambriano; com isso, toda a Teoria da Evolução das Espécies, da forma como ela é estudada hoje pela biologia, cai por terra, e isso só vai poder mudar se um dia surgir uma explicação muito convincente para que possam ter existido coelhos no período pré-cambriano de uma forma que não afete a Teoria da Evolução das Espécies.
Da mesma forma, em relação à teoria que estou analisando, eu esperava uma explicação um pouco mais convincente do que simplesmente “a exceção confirma a regra”, que é um dos argumentos lógicos mais fracos e fáceis de quebrar que eu já vi. 

3. Os sete pecados capitais

Segundo o autor, cada um dos personagens principais cometeu um dos pecados capitais em vida, e eles são refletidos em seus medos, características e frustrações. Vejamos o que ele fala sobre cada personagem:

Chaves (Gula)
Ora, como Chaves foi guloso em vida, isso se refletirá nas características dele, que ele está sempre atrás de comida. E, claro, causa das principais frustrações dele, pois ele frequentemente vai atrás de comida e não consegue, ou fica muito perto de conseguir comer, mas alguma coisa dá errado no final. A minha pergunta é: se ele precisa passar toda a eternidade com a frustração de não conseguir comer, como ele consegue comer tantas vezes ao longo da série? Já vi ele comendo ovos, bolo, sanduíche de presunto, churros, pipoca, pirulito, etc, etc. Estranho, não?
Mais estranho ainda é o autor levantar a questão sobre o prato preferido dele (sanduíche de presunto) conter carne de porco, o que seria um “desprezo pelas leis de Deus”, que teria proibido o consumo de carne suína. Ora, se a série é baseada nos pecados capitais, que são adotados principalmente pelos católicos, por que levantaria a questão da proibição da carne de porco, que é uma proibição ignorada pelo catolicismo? O mesmo tema é levantado pelo autor em relação ao apelido do “Mestre Linguiça”, que seria uma “referência a malfadada iguaria suína”. Aí eu pergunto ao leitor: o que é mais provável? Que o apelido se deva a uma proibição totalmente ignorada pelos católicos ou que o apelido seja explicado pela altura do professor?

Seu Madruga (Preguiça)
Então eu acho que, na visão do autor, um desempregado é um preguiçoso. Apesar da frase clássica “Não tem trabalho ruim, senhora! O ruim é ter que trabalhar...”, Seu Madruga é provavelmente o personagem mais trabalhador da série, e já teve todo tipo de emprego. Seu esforço para fugir normalmente não é para fugir do trabalho, mas para não pagar os 14 meses de aluguel, já que não tem dinheiro.
Aí o autor entra em um ponto interessante: por que os 14 meses de aluguel nunca se tornam 15? Para ele, isso deixa claro que “a passagem do tempo está suspensa”. Até mesmo o próprio Edgar Vivar, intérprete do Seu Barriga, admitiu em uma entrevista que não sabe por que motivo (causa, razão ou circunstância) o Seu Madruga sempre deve 14 meses de aluguel.
Pra mim, a explicação é mais simples do uma distorção temporal. Tenho, na verdade, duas suposições, que não anulam uma à outra, e que me parecem muito mais prováveis. A primeira, é que se trata simplesmente de um toque cômico. A segunda é que isso acontece por se tratar de uma série com capítulos independentes, não-contínuos. Como os capítulos não dependem um do outro, não há uma continuação, o espectador não precisa seguir uma ordem. Ele pode simplesmente ver um capítulo aleatório. Isso acontece com muitas séries de comédia (principalmente desenhos), como, por exemplo, O Laboratório de Dexter, Johnny Bravo (e a maioria dos Cartoon Cartoons), Padrinhos Mágicos, Bob Esponja, Os Normais, Sai de Baixo, etc. É diferente de outras obras que precisam ser acompanhadas em sequência (principalmente séries dos EUA, novelas e animes), como Dragon Ball, Game of Thrones ou Avenida Brasil. 
Esse é, na minha opinião, o principal motivo de a dívida ser sempre de 14 meses. Não importa o episódio que você assista, sempre vão ser 14. Mas, se existisse uma evolução cronológica de acordo com o número do episódio, ao assistirmos hoje em dia, nas reprises (ou mesmo na época correta, mas assistindo episódios aleatórios, fora de ordem), ficaria estranho se víssemos hoje um episódio em que ele deve 5 meses, amanhã um que ele deve 13, depois 8, depois 2.

Seu Barriga (Avareza)
Segundo o autor “A ganância do Seu Barriga é óbvia”. Afinal, ele vai à vila cobrar o aluguel todos os dias. Será que o fato de Seu Madruga não pagar faz parte da punição que ele tem que sofrer? A frustração de nunca poder receber o dinheiro do aluguel? Em primeiro lugar, o Seu Barriga é um homem rico na série, e não demonstra ser ganancioso. Pelo contrário, é capaz de ações que contradizem essa ganância, como perdoar 14 meses de aluguel atrasado do Seu Madruga, como fez uma vez, ou de pagar todas as despesas da viagem de Chaves para Acapulco. Não poderíamos considerar que a fata de pagamento seria uma “punição”, até porque os outros condôminos costumam pagar em dia, e o próprio Seu Madruga chega também a pagar 14 meses atrasados de uma só vez (em um episódio que ele perde o dinheiro mas, no final, acha e paga para o Seu Barriga). E ele é ganancioso por que cobra o aluguel diariamente? Pergunto ao leitor: você também não cobraria, sabendo que tem um inquilino que é mau pagador e está lhe enrolando há 14 meses para pagar o aluguel? Se ele fosse ganancioso de verdade, ele já não teria despejado o Seu Madruga para alugar para alguém que realmente pague?
Aí o autor vem com um de seus argumentos mais ridículos: o fato de ele possuir uma Brasília amarela (eu nem lembrava que ele tinha uma Brasília, já que aparece em tão poucos episódios) faz uma referência ao Brasil, um país corrupto, o que indica que em vida o Seu Barriga deve ter se envolvido em casos de corrupção. Vamos ao motivo mais provável: na época, a Brasília, feita pela Volkswagen, era um carro novo, e era tido como um carro chique, de rico. Seu Barriga, um personagem rico, precisava ter uma carrão do momento, e o escolhido foi a Brasília.
Até onde eu sei, o Brasil é um país referência de corrupção no Brasil. No resto do mundo, ele é visto como um país bonito, com gente bonita, mulheres, dança, samba, carnaval, futebol, Pelé, praias, Rio, Cristo Redentor, Amazônia, povo alegre, acolhedor e receptivo. É dificílimo encontrar um estrangeiro que nunca tenha ido ao Brasil que associe o país à corrupção, que conheça a política do Brasil e que conheça algum político brasileiro que não seja Lula (e olhe lá). O próprio México é um país que enfrenta problemas de corrupção. Se Chespirito quisesse fazer uma referência e uma crítica a um país corrupto, porque não escolher o próprio México, que era uma realidade mais próxima e que o público alvo teria mais chances de compreender?

Quico (Inveja)
Quico seria, segundo o autor, o menino mais rico da vila (se você não considerar Nhonho, deve ser verdade), que é extremamente invejoso. Ao ver os brinquedos das outras crianças, fica com inveja, mesmo que o dele seja melhor. Ele cobiça o que é dos outros e nunca fica satisfeito, gerando um ciclo eterno de inveja.
Na minha visão, mais do que invejoso, Quico é esnobe. Ele não é acometido de inveja, ele gosta de provocar inveja nos outros com seus brinquedos melhores. Mas, de todas as comparações feitas com os pecados capitais, acho que essa seja a mais aceitável.

Chiquinha (Ira)
Chiquinha seria uma criança raivosa, que gostava de arranjar briga e, como punição, foi para o inferno como a pessoa mais fraca da vila. Além disso, ela teria morrido em uma briga de trânsito, e por isso ela atropela pés e brinquedos com seu triciclo (?). Bem, eu não lembro de acessos de raiva da personagem, não seria uma característica que eu atribuiria a ela. Além disso, triciclo? Lembro de ela usar um triciclo em pouquíssimas ocasiões. Se o triciclo fosse a “arma potencializadora de sua ira”, como afirma o autor, seu uso não seria mais freqüente?

Dona Florinda e Professor Girafales (Luxúria)
Parece que o número de personagens principais era maior do que o número de pecados capitais, então ele enquadrou dois personagens em um pecado só; conveniente, não? Segundo o autor, os dois, em vida, seriam “Mestres na arte da luxúria”, e foram condenados a uma “eternidade de abstinência sexual”. A mente quer, mas o corpo não acompanha.
Muito pelo contrário! O corpo quer e a mente não acompanha. Para quem assiste a série, é óbvio que os dois estão apaixonados. E, de fato, aparentemente nada se consuma na série, nem mesmo um beijo. Isso acontece, na minha visão, porque os dois são muito “lentos”, “recatados”. Se eles fossem esses mestres da luxúria, mas que por algum motivo tivessem sido condenados à abstinência sexual, o que explicaria o fato de eles serem tão recatados? Não deveria ter acontecido, no mínimo, um beijo entre eles? Ou entre algum deles (ou os dois) e outro personagem? Afinal de contas, são os mestres da luxúria, não?
A tal da xícara de café entraria como parte da punição, já que é um líquido estimulante, e alimentaria o “fogo que não podem debelar”. Sério? Desde quando o café é uma referência de estimulante sexual? Que eu saiba é uma referência de estimulante para que a pessoa não durma. O fato de o professor Girafales fumar em sala de aula não é porque ele é um fumante, não. É por causa de seu cacoete pós-coito: como ele não consegue cumprir a primeira parte, cumpre a segunda involuntariamente. Isso não existe! Se a segunda ação é condicionada pela primeira, e a primeira não acontece, a segunda também não. Logo, o ato de ele fumar em sala não tem a ver com o ato sexual em si, mas com o fato de que ele, como fumante, teve vontade de acender um charuto.

Sobre a trilha sonora, é um argumento difícil de levar a sério. Chespirito teria escolhido a música dos dois porque ela faz parte da trilha sonora de um filme cuja última frase ele queria fazer referência. Não poderia ser porque a música é romântica, ou porque o filme é romântico? A frase em questão é “amanhã será outro dia”, que, a meu ver, não faz nenhuma referência a nenhum ciclo temporal repetitivo (a não ser que “E o Vento Levou” trate desse tema, né? Nunca assisti esse filme).

Dona Clotilde (Vaidade)
Em primeiro lugar, não lembro de nenhum momento que mostre Dona Clotilde como uma pessoa vaidosa. Mas queria falar sobre Satanás, o gato dela. Para mim, é apenas mais um toque cômico, só para fazer a piada do “Satanás! Venha cá, Satanás!”, quando Dona Clotilde chama o gato, fazendo com que as crianças continuem pensando que ela é uma bruxa. Para o autor, isso é um sinal claro da presença de vários demônios errantes na vila, sendo um deles o próprio Satanás, cada um gerando um dos pecados capitais. Passaremos a eles logo após falarmos um pouco sobre os números.

4. Números

As relações numéricas são muito freqüentes em teorias da conspiração em geral. Vejamos as relações numéricas presentes nessa teoria:
  • El Chavo del Ocho. O “Ocho” é porque ele mora (ou morou) na casa de número 8 com uma velha. O 8, deitado, é o símbolo do infinito. Logo, em uma lógica indefectível, a velha é a própria personificação da morte;
  • Seu Madruga deve ao Seu Barriga 14 meses de aluguel. 14=7+7. Na “tradição crística”, 70X07 é igual ao infinito (o + virou X porque “deitou”, da mesma forma que o 8);
  • A Bruxa do 71 mora no 71, e 7+1=8, que deitado vira o símbolo do infinito.


A teoria cai na mesma falha que a maioria das teorias quando tentam abordar relações numéricas. Qualquer relação numérica desse tipo só pode ser considerada válida se for usada a mesma relação numérica em todos os casos. Por quê? Porque se eu tiver a liberdade de “viajar” da forma que eu quiser, e usar qualquer tipo de conta, eu posso arranjar praticamente qualquer número a partir de qualquer número. 
Vejamos os exemplo que o autor utilizou. No primeiro, ele deitou o 8 e transformou no infinito. No segundo, ele separou o número (14) em uma soma (7+7). Depois, teve a liberdade de adicionar um 0 de cada lado (sendo que foi um à esquerda, e outro à direita do 7), transformando a conta em (70X07). A explicação dele para o sinal mudar é que, assim como o 8 “deita” para virar infinito, o “+” deita para virar “X”. É só pensar um pouquinho para visualizar o absurdo. O 8 vira o símbolo do infinito ao ser girado em 90° para a direita ou para a esquerda. Se fôssemos deitar o símbolo de “+” 90° para qualquer direção, ele nunca se tornaria um “X”. O símbolo de adição é uma cruz de lados iguais, com 4 ângulos de 90°. Ela pode ser girada em 90°, 180°, ou qualquer outro múltiplo de 90, e continuará exatamente igual. Para que um símbolo de adição se torne um símbolo de multiplicação, ele precisa ser girado 45° para a esquerda ou para a direita. Sobre a terceira operação matemática, o autor transformou o 71 em 7+1 (em uma relação diferente do que ele fez com o 14. Se fosse igual, deveria ser algo como 35,5+35,5, ou, sendo um pouco mais livre, outra soma que desse 71, como 40+31). Depois, pegou o resultado (8), e deitou, chegando novamente ao infinito. 
Ele pegou 3 números aleatórios e chegou ao infinito utilizando relações numéricas quaisquer que ele teve liberdade de escolher. Isso é fácil! Isso eu também faço. Vamos pegar um número que ele não usou: a casa de Dona Florinda e Quico, que é de número 14 (ele usou o 14, mas não o número da casa deles). Ora, 14 pode ser fatorado assim: 14=14X1. Se eu inverter os dois fatores, terei 41 e 1. E 41+1=42, que, segundo Douglas Adams, autor de “O Guia dos Mochileiros das Galáxias”, é a resposta para todas as perguntas fundamentais envolvendo a vida, o universo e tudo mais.

5. Outros demônios

Existem sete demônios relacionados aos pecados capitais, que ajudam a gerá-los. Satanás, o da vaidade, ajuda a manter o boato de que Dona Clotilde é uma bruxa (não entendo de que forma isso gera vaidade). Para o autor, parece óbvio que Paty e Glória são demônios geradores da gula e preguiça, metamorfoseados em súcubus, para atiçar “outros apetites” em Chaves (encaixa com o pecado da gula, que não se refere só a comida) e tirar Seu Madruga do estado de letargia. Mas se Glória (ou Belphegor) é um demônio gerador de preguiça, ele não deveria gerar a preguiça em Seu Madruga, em vez de tirá-lo do estado de letargia?
Hector Bonilla, um ator que aparece em um episódio, seria um íncubo, demônio sexual masculino, representando a luxúria, que estaria lá para tumultuar a relação do Professor Girafales com Dona Florinda. Nhonho seria Mammon (avareza), pois incentiva seu pai a gastar. Não vejo muitos momentos em que isso acontece, e se alguém incentiva os pais a gastarem na série, seriam Quico e Chiquinha, não?
Por fim, Pópis despertaria a ira de Chiquinha com sua futilidade, e Godinez atiça “a inveja de Quico com suas respostas tão certeiras como involuntárias ao Mestre Lingüiça”. Não lembro quando foi que Godinez, em algum momento, despertou a inveja de Quico com respostas ao professor Girafales. Suas respostas eram sempre involuntárias, sim. Ele era o aluno do “fundão” que não sabia nada do assunto, e quando o professor perguntava ele dava alguma resposta errada, mas engraçada. Mas não lembro de uma ocasião em que isso tenha causado inveja a Quico ou a algum outro aluno. 
O autor fala ainda que outros personagens de menor importância, como Seu Furtado, Dona Neves e os figurantes, seriam demônios menores. É interessante como, por pura conveniência, ele reduz Dona Neves a uma personagem de menor importância, e coloca Hector Bonilla, que só aparece em um episódio, como um demônio mais importante para encaixar melhor na teoria.

6. Jaiminho

Segundo o autor, Jaiminho, o carteiro tangamandapiano, seria um médium, que tenta fazer contato com os mortos. Ele sempre está fatigado devido ao esforço para ir do mundo dos vivos ao mundo dos mortos. As cartas que ele entrega são psicografadas, e a bicicleta seria um totem semelhante aos do filme “A Origem”. A cidade de Tangamandápio, apesar de existir de fato, para o autor é uma alegoria para o mundo dos vivos, já que Jaiminho a descreve como uma cidade de muitos milhões de habitantes, maior do que Nova York.
Se alguém se encaixava no pecado capital da preguiça era Jaiminho. Ele nunca diz que está fatigado, e sim querendo “evitar a fatiga”, o que é diferente. E ele demonstra sinais claros de preguiça, como quando, ao entregar a bolsa de cartas para Dona Florinda, diz algo como “procure aí...”, para que ela procure suas cartas. Sobre a cidade dele, é muito normal que uma pessoa, ao sair de sua cidade, a descreva de uma forma grandiosa. Eu mesmo, que hoje moro longe de minha cidade natal, quando falo sobre ela a descrevo como se fosse a melhor cidade do mundo, apesar de seus defeitos, de que eu tenho consciência. 
E, por fim, as cartas psicografadas. Ele é um médium vivo, e está lá para entregar as cartas aos mortos. Ele entrega as cartas aos mortos (ou pelo menos manda eles pegarem na bolsa). Ele tem contato físico, pessoal, com os vivos. Então para quê ele precisa psicografar as cartas? Se são cartas para os mortos, escritas pelos vivos, e ele tem contato físico e direto com os vivos, para que ele precisa psicografar as cartas para entregar para os mortos? Ele precisaria psicografar se fosse para escrever uma mensagem de um morto para um vivo, não?

Conclusão:

Apesar de ser bem escrito, o texto tem muitas falhas. Me parece que ele tenta usar uma linguagem culta e técnica, citando vários nomes da filosofia e da literatura em geral apenas para tentar dar credibilidade ao texto, para intimidar possíveis contra-argumentos. Mas, se a teoria for analisada, é fácil perceber os erros, os buracos, e derrubá-la. Me surpreende que alguém consiga levar essa teoria a sério. Fiz questão de fazer esse texto contra-argumentando porque acho que a teoria é um insulto à obra de Chespirito, que eu vejo como um dos maiores símbolos do humor inocente.

Observação:

Fiz esse texto porque precisava “responder” a essa teoria, pois fiquei revoltado assim que ouvi falar dela, e mais ainda depois que li. Também tinha prometido a algumas pessoas que faria o texto, e precisava cumprir a promessa. Mas, ao pesquisar para fazer o texto, descobri que o autor da teoria é um colunista da revista Bula chamado Ademir Luiz, e que ele publicou a teoria como um ensaio humorístico, e que na época da publicação gerou muita polêmica. Fui apresentado ao texto sem a fonte, e como uma teoria séria, o que me motivou a fazer o texto. Fiquei sabendo da origem da teoria antes de escrever o texto, mas o escrevi mesmo assim devido à minha motivação inicial e à minha promessa de mais de um ano atrás.

2 comentários:

  1. Brilhante cada observação, sendo um ensaio humorístico ou não foi muito importante sua resposta porque muita gente leva isso a sério como pode ser visto em todo canto da net (porque muita gente bitolada liga tudo ao diabo) e de certa forma desmerece a obra do grande Chespirito que deve ser lembrado com carinho! Sendo bem escrito, irônico ou não acredito que se o Chespirito lesse aquele artigo não ficaria contente em ver seu trabalho dedicado principalmente ao público infantil ser comparado ao inferno.

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  2. Brilhante cada observação, sendo um ensaio humorístico ou não foi muito importante sua resposta porque muita gente leva isso a sério como pode ser visto em todo canto da net (porque muita gente bitolada liga tudo ao diabo) e de certa forma desmerece a obra do grande Chespirito que deve ser lembrado com carinho! Sendo bem escrito, irônico ou não acredito que se o Chespirito lesse aquele artigo não ficaria contente em ver seu trabalho dedicado principalmente ao público infantil ser comparado ao inferno.

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